Seja Bem-Vindo

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sábado, 5 de junho de 2010

... um conto


MEIO SÉCULO


Acordou cedo como de costume e correu para a frente do espelho, pensando enquanto olhava criteriosamente cada centímetro do rosto: cinquenta anos! Que susto. Meio século. Tinha que se sentir feliz, afinal estava de aniversário. Tem quem morra antes. Em vão tentava se convencer.
Enquanto fazia café e o bebia, mastigando o pão integral com banana assada no microondas, Helena planejava mil coisas para o dia, que imaginara especial. Sempre valorizou muito o dia do seu aniversário. Quando ainda estava na ativa, numa rotina sem atrativos e já contando os anos finais para a aposentadoria proporcional e antecipada, preferia faltar ao trabalho nesse dia e reservá-lo somente para si. Fazer coisas prazerosas sem preocupação com o tempo: horário de voltar, ir nadar, comprar camarão no mercado, um sapato interessante da vitrine da loja, o que desse na “telha” sem nenhuma pressa. Fazer sua comida preferida – e todas as suas vontades, enfim. Viver cada minuto, sorvê-lo, fazê-lo durar em prazeres.
As coisas haviam mudado desde a aposentadoria. De início foi um vislumbre. Liberdade. Tempo para tudo que quisesse – até para não fazer coisa alguma. Recolhimento, solidão opcional. Escolhida. Era uma sensação de completude, sem qualquer neura com idade.
Que raio de sentimento era esse afinal, que pela primeira vez lhe deixava sem qualquer desejo de ficar contente no seu aniversário? E sem nenhuma vontade por mais atrativa que fosse a idéia, para festejá-lo a seu modo?
A sensação era densa. Um peso sobre os ombros, mas insistiu na tentativa de animar-se com a data.
Fez planos mirabolantes. Imaginou telefonar para algumas pessoas; com algumas anteviu o transcorrer do dia e não lhe atraiu. Mentalmente deu-se conta da previsibilidade de tudo. Desistiu dos telefonemas. Com outras, deu-se conta a tempo da estupidez do ato e abortou todas as tentativas. Definitivamente.
Pensou em fugir de casa e riu da idéia, lembrando-se de remoto desejo em tempos passados, vivenciando um casamento desgastado pela rotina. Mas eram outros tempos agora, Helena!
Um SPA, quem sabe? Passar o dia todo lá e não ter que receber pessoas que não desejava ver nesse dia: receber felicitações, ter que providenciar um bolo, que nem comeria, refrigerantes, que nem beberia, ganhar presentes, que provavelmente nem usaria. Livrou-se rapidamente desses pensamentos.
O telefone começou a tocar e decidiu tirá-lo da tomada. A idéia do SPA voltou a tamborilar em sua cabeça. Mas ficar lá sozinha? Solidão era tudo o que já possuía. De sobra.
Pensou em Humberto e sem racionalizar muito, pois desse modo acabaria não fazendo, sentou-se ao computador e mandou-lhe uma mensagem, sondando o terreno, querendo saber como estava, como andava seu humor, se seus problemas na empresa se resolviam e coisas assim.
Seu humor continuava ácido. A resposta econômica de palavras logo lhe deu a certeza que as coisas não andavam muito bem. Os homens ficam assexuados quando têm problemas financeiros.
A tarde já findava quando se deu conta de que nada fizera de prazeroso. O tempo transcorreu na tentativa de tornar melhor o seu aniversário. O sentimento de peso continuava. Mas o que pesava mesmo era a sensação de insignificância. Já estava se achando a pessoa menos importante do universo. Passaria facilmente pela fresta debaixo da porta, iluminada agora pelos parcos raios solares do dia que estava a findar.
Melhor tomar uma ducha, sempre lhe deixava melhor.
Olhou-se no espelho enquanto secava o corpo, dando-se conta de que apesar da vida saudável que procurava ter, seu corpo já não tinha viço. O sentimento de que havia se tornado transparente aos olhos dos homens era uma triste constatação, agora também refletida no espelho, para que nenhuma dúvida disso pairasse.
Tentou um último gesto ainda, no desespero de salvar o dia, ou o significado da data. Derradeira insensatez: mandou uma última mensagem, teclada na esperança de poupar a noite de seu aniversário, pelo menos, sugerindo sutilmente um jantar, a dois, regado a um bom vinho. Preferiu não fazer menção ao aniversário e ficou aguardando. Desistiu dos outros planos e focou a atenção no visor do computador que inexorável lhe informava que não havia mensagem na sua caixa de entrada. Zero mensagem.
O resto do dia arrastou-se sofregamente.
Antes mesmo que a noite chegasse colocou os gatos para dentro de casa, alimentou-os. Fechou todas as janelas.
Ficou tudo cinzento, a hora do lusco-fusco, como dizem. Sentia-se igualmente cinza por dentro. Preferiu não ver escurecer, melhor ficar com o gris.
Desligou o computador. Enfiou-se debaixo das cobertas e foi dormir.



Malene Edir Severino

Publicado pela CBJE, contos selecionados Amor & Desamor e está entre
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